sábado, agosto 16, 2008

Li, gostei e recomendo

"O diabo que te carregue" (romance, 2006), de Stella Florence*, é um livro de leitura fácil, descomplicada, objetiva. Com sua escrita leve e bem-humorada, a autora aborda um tema bem comum nos dias atuais: a separação de casais, que, quase sempre, não é nada amigável... É leitura bastante interessante mesmo para aquele(a)s que não estejam passando por esse difícil momento. Difícil porque uma separação nunca vem sozinha: vem sempre acompanhada de outros sentimentos nada fáceis de serem administrados... Ainda assim, dei muita risada, algumas cenas são hilárias como esta aí. Quem já passou por isso sabe que é desse jeito mesmo! ;-)
"É inevitável sentir raiva do seu ex, tanto quanto é inevitável chover em Ubatuba. Por mais que ele seja uma pessoa boa e blábláblá, agora ele é um ex-marido e ex-maridos são feitos para ser, pelo menos nos primeiros meses da separação, no máximo, tolerados. Por isso, quando seu ex te ligar para saber das crianças, ceife o sorrisinho de boa moça da sua cara, pare de mentir para si mesma e, ao desligar o telefone, grite alto o bastante para que você possa ouvir o que só a você interessa: 'Que o diabo te carregue, seu cretino!'. Com exclamação, por favor. E muito bem pronunciado, fazendo as palavras arranharem a garganta. Depois você pode experimentar variações sobre o mesmo tema. Vá comer quiabo com tofu no meio do inferno! Vá fazer a barba com gilete enferrujada no vale do Belzebu! Vá arrancar os dentes com o dr. Mefisto! Nem sempre é necessário gritar, você pode sibilar, falar fininho e em falsete coisas como: por que você não morre? Ou então: o que você acha de eu despejar um tubo de Superbonder no seu pinto? Ou ainda: você já mascou seu fardo de capim hoje, meu bem?
A não ser que você já tenha alcançado as culminâncias da santidade, é importante assumir as raivas e mágoas que sente do seu ex. Sem admiti-las como filhas legítimas da sua dor, sem reconhecer-lhes a presença, sem olhar bem fundo nos seus olhos remelentos, elas nunca vão te deixar em paz. E paz é tudo o que se quer depois de uma separação."
*Stella Florence nasceu em São Paulo (onde vive até hoje) aos 14 de abril de 1967, tem uma filha, 30 tatuagens. É autora de seis livros, são eles: Hoje Acordei Gorda (contos, 1999); Por Que os Homens Não Cortam as Unhas dos Pés? (contos, 2000); Ele me Trocou por Uma Porca Chauvinista (contos, 2001); Ciúme, Chulé e um Apelido Ridículo (romance, 2002); Ser Menina é Tudo de Bom! (crônicas, 2005), todos pela Editora Rocco.

sexta-feira, agosto 15, 2008

Poesia Afro-Brasileira Contemporânea

Vozes-mulheres
Conceição Evaristo*

A voz de minha bisavó ecoou
criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
De uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
No fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado rumo à favela.

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.

A voz de minha filha recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.



* Maria da Conceição Evaristo de Brito, nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1946. Em 1973, depois de ter concluído, em 1971, o antigo Curso Normal pelo Instituto de Educação de Minas Gerais, presta concurso no Rio de Janeiro e se ingressa no magistério público. É graduada em Letras (Português-Literatura) pela UFRJ. É mestre em Literatura Brasileira pela PUC/RJ e Doutoranda em Literatura Comparada na UFF. Esteve como palestrante em 1996, nas cidades de Viena e de Salzburgo/Áustria e, em 2000, Mayagüez, Porto Rico, falando sobre Literatura Afro-brasileira.
Seus poemas são publicados, anualmente, desde 1990, na coletânea Cadernos Negros, do grupo Quilombhoje.
Publicou dois romances intitulados “Ponciá Vivêncio” (2003) e “Becos da Memória” (2006).

domingo, agosto 10, 2008

A poesia feminina afro-brasileira e africanas de LP

Estive ausente deste espaço durante todo o mês de julho, mas foi por um motivo justo: tive de entregar o trabalho final para a conclusão do curso de pós-graduação em Língua Portuguesa. O tema do meu artigo foi a poesia feminina afro-brasileira e africanas de língua portuguesa, cujo objetivo principal era verificar o discurso comum presente entre as seis poetisas estudadas. Infelizmente, apenas uma de cada país, por absoluta falta de espaço: o texto deveria ter, no máximo, vinte e cinco páginas.

As poetisas selecionadas foram: Alda Lara, de Angola; Alzira Cabral, de Cabo Verde; Odete Semedo, da Guiné-Bissau; Noémia de Sousa, de Moçambique; Manoela Margarido, de São Tomé e Príncipe e, por fim, Conceição Evaristo, do Brasil.

Com essa pesquisa aprendi um pouco mais sobre África e sua literatura. Apesar de todos os pesares que rondam o Continente Africano há, pelo menos, cinco séculos - e mesmo agora em tempos de independência - é sempre fascinante conhecer as raízes e a cultura desses povos que os livros de História pouco, ou quase nada, revelam.

Num dado ponto da minha pesquisa, li a seguinte frase que me deixou indignada: “a mulher é o negro do mundo”. Só neste momento é que atinei para o fato de que o meu trabalho, mais do que uma pesquisa, seria um desafio. E foi.

A realização desse trabalho permitiu-me concluir, com alguma tristeza, o quão incipientes são a literatura africana e a afro-brasileira, sobretudo a produzida por mulheres...

A literatura negra contemporânea, tanto em África portuguesa como no Brasil, ainda não tem o estatuto de “literatura oficial”. Infelizmente, essa literatura ainda não é suficientemente visível e nem reconhecida – pelo menos não o tanto que merece – pelos chamados “altos círculos literários”.

A poesia negra em geral só começou a ser publicada muito recentemente no Brasil: a partir dos anos 70. Coincidentemente – ou não(?) – é a mesma época de luta pela libertação colonial em África. Nesse ponto da história, o brasileiro afrodescendente assume com mais veemência sua Negritude, direcionando seus discursos de liberdade contra um sistema de total preconceito contra esse povo.

Assim como o africano o afro-brasileiro solta a voz contra as injustiças sociais sofridas ainda pelos resquícios da escravidão – um passado que teima em não passar! – e expressa sua revolta através da poesia.

As vozes-mulheres estudadas na pesquisa apresentam em comum a recuperação da dignidade perdida, de procura e de afirmação da identidade nacional: tanto as poetisas afro-brasileiras como as africanas, cada uma a seu modo, cada uma com seu estilo próprio, com sua voz única e específica.

O discurso comum aos dois continentes, nos seis poemas analisados, é o de mulheres socialmente engajadas, em busca do “eu” mais profundo e verdadeiro, em busca de suas raízes, num mergulho nas profundezas turbulentas de um passado “hediondo”, “inconseqüente” que insiste em se fazer presente...

O sentido de africanidade também é muito presente no discurso dessas mulheres; é tema recorrente um querer “ser africana”. Escrevem uma “realidade” que se revela repleta de dor, mas também de resistência. O eco dessas vozes-mulheres, africanas e afro-brasileiras, ressoa cada vez mais forte, em busca, de uma vez por todas, de “liberdade, ainda que tardia”.

Em Nome do Pai ou Um Suspiro de Felicidade

Ela morava com seu avô e mais três irmãos. Sabia que tinha um pai. Sabia o seu nome, onde morava, como vivia. Fisicamente era magro, pele branca, estatura mediana, cabelos castanhos claro e olhos cor de mel. Podia-se dizer que era um homem até bonito, embora fosse alcóolatra. Fazia-se “presente” de vez em quando. Algumas das vezes, até sóbrio...

Comemorar o dia dos pais era particularmente difícil para aquela menina, principalmente quando na escola a professora pedia a bendita composição em homenagem aos pais. A professora, insensível à sua angústia, não atinava ao fato de que a menina não tinha uma família padrão para a época: seus pais eram, além de separados, ausentes. Como ela nunca tivera o pai dos seus sonhos – aquele dos passeios aos domingos; aquele que ela pudesse sentir que estaria sempre por perto nas situações de medo; ou, simplesmente, aquele que lhe dissesse “filha, eu sou seu pai, estou aqui, conte comigo” – sempre perguntava: “professora, posso fazer a composição para o vovô?" E, incrivelmente!!, a professora respondia: “não, tem que ser para o papai”.

A menina, então, ano após ano, fez suas composições em homenagem ao pai dos seus sonhos. Assim, satisfazia à professora - que sempre lhe dava grau máximo pelos seus textos, sem se importar se correspondia ou não à realidade – e também a ela própria: pois, ali, no papel, em suas estórias, podia “inventar” o pai que quisesse.

Mais alguns anos se passaram e, desta vez sem pressões, decidiu fazer uma verdadeira homenagem ao seu pai. Mas para qual dos dois seria? O imaginário ou o real? Isso já não era mais importante... Aquela menina crescera e escreveu uma composição que começava assim:

Era grande a alegria que eu sentia, todas as tardes, sempre às 17h, quando acompanhava papai até à padaria da esquina.

Esse momento era esperado com ansiedade durante todo o dia. Primeiro, porque papai era somente meu naquele itinerário: de casa para a padaria. Segundo, porque, perto das 17h, eu já sentia o cheiro do suspiro vindo daquela casa de pães... Nossa! uma verdadeira iguaria!

Esta era uma cena diária – pena que só acontecia de dezembro a março - nos três meses de férias que passávamos, meus irmãos e eu, com papai: eu sentava na calçada em frente à nossa casa, esperava papai chegar do trabalho, pontualmente às 16h30. Quando papai aparecia lá no início da rua, eu corria para encontrá-lo e, íamos, então, ao suspiro.

"Seu" Joaquim, o dono da padaria, fugia das características de um português autêntico: era magrinho, tinha bom humor e parecia que estava sempre feliz. Contava muitas histórias sobre papai, pois o conheceu ainda bem pequeno - papai mora, há 78 anos, na mesma casa em que nasceu!! Dizia que papai, assim como eu, gostava de comer suspiros todos os dias. Dizia, também, que o "amor" era o ingrediente principal da receita de suspiros de dona Margarida, sua esposa, já falecida, com quem aprendeu a prepará-los.

Na época não entendi muito bem, mas, hoje, tenho certeza de que as "boas energias" contidas naquele suspiro quentinho, saído do forno no exato momento em que papai chegava na esquina da padaria, é uma das minhas melhores lembranças...

A imagem da felicidade, para mim, era aquela rotina simples: papai e eu, e o suspiro quentinho da padaria da esquina.
Veronica Benesi
Belo Horizonte, 10 de agosto de 2008.