quarta-feira, setembro 16, 2009

UM POETA E UM POEMA (2)

Noémia de Sousa (1926-2002) – Moçambique

Noémia deixou Maputo com destino a Lisboa em 1951, tendo dali emigrado para Paris em 1964. Regressou a Lisboa em 1975, onde residiu e trabalhou como jornalista e tradutora até o seu falecimento em dezembro de 2002.[1]

Seu poema Magaiça[2] aponta para o trabalhador moçambicano que emigrava para as minas do Rand ou compounds (áreas de exploração) da África do Sul. Sonhando com uma vida melhor, retorna à terra na condição em que partira, miserável como sempre.

No contexto dos anos 40-50, a poesia funcionava como testemunho de uma condição humana e denúncia social e política, ainda que sob a forma de lamento ou piedade, pois era a fase da “poesia de combate”. Havia nesse período uma conscientização plena da Negritude --contrária à estética burguesa e imperialista-- que Noémia assume num interessante jogo linguístico: utiliza estrangeirismos para identificar uma tentativa de aculturação que não vingou (“o ser deslocado / embrulhado em ridículo”); a língua portuguesa, a do colonizador, para que essa denúncia pudesse atingir um grande número de leitores; e a língua materna, a língua da infânica, deixando claro que África é o seu lugar.

Magaíça
(Noémia de Sousa)

A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda
engoliu o mamparra
[3],
entontecido todo pela algazarra
incompreensível dos brancos da estação
e pelo resfolegar trepidante dos comboios,
tragou seus olhos redondos de pasmo,
seu coração apertado na angústia do desconhecido,
sua trouxa de farrapos
carregando a ânsia enorme, tecida
de sonhos insatisfeitos do mamparra.

E um dia,
o comboio voltou, arfando, arfando...
oh nhanisse
[4], voltou!
E com ele, magaíça,
de sobretudo, cachecol e meia listrada
e um ser deslocado,
embrulhado em ridículo.

Às costas -- ah, onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça? --
trazes as malas cheias do falso brilho
dos restos da falsa civilização do compound
[5] do Rand[6].
E na mão,
magaíça atordoado acendeu o candeeiro,
à cata das ilusões perdidas,
da mocidade e da saúde que ficaram soterradas
lá nas minas do Jone
[7]...

A mocidade e a saúde,
as ilusões perdidas
que brilharão como astros no decote de qualquer lady
nas noites deslumbrantes de qualquer City.


[1] Informações biográficas retiradas de http://koluki.blogspot.com
[2] Magaíça - mineiro moçambicano regressado da África do Sul
[3] Mamparra - pessoa rústica
[4] Nhanisse - deveras, na verdade
[5] Componde - os acantonamentos ou «reservas» de trabalhadores na África do Sul (do inglês compound); barracão, camarata
[6] Rand - (top. sul-afr.) Unidade monetária principal da África do Sul e da Namíbia
[7] Jone - abreviatura de Joanesburgo = Djoni (= John, Johne) - minas do Rand.